Voar. Era mais que um sonho: uma certeza. Era uma meta, daquelas que se
deseja tanto que se sabe que um dia, nem que seja distante, se chegará
lá. Ele queria voar. E um dia seria capaz, tão certo como dois mais dois
serem quatro – se bem que nem sempre a matemática tem os resultados
certos para a vida. E se não conseguisse? E se afinal não tinha talento
suficiente para voar sozinho? Queria voar. Sabia como voar. Mas
demorava-se com tanta coisa que lhe surgia pelo caminho. Começou a
acreditar que se calhar não era preciso voar. Se calhar ia ser feliz em
terra, sempre em terra. E procurou preencher-se assim, mudar de sonhos.
Sentia-se bem, mas quando fechava os olhos continuava a surgir a mesma
imagem. Via-se a voar. Lá no fundo, num lugar escondido dentro de si que
não mostrava a ninguém, continuava vivo o sonho de chegar longe, a um
destino fabuloso escondido algures para lá dos limites do céu. Foi numa
noite em que estava perdido nesse lugar misterioso de si mesmo que ela, a
mulher mais infinita que já tinha conhecido, lhe disse com um sorriso:
“Para conseguires voar tens de manter um pé na terra e levantar o outro
para o céu.” Ele não percebeu. E até se irritou com a firmeza na voz
dela. O que queria dizer? Como ousava pensar que o conhecia? Ela nunca
tinha entrado no fundo mais fundo de si, esse lugar que era quase um
avesso do que se via do lado de fora. Não lhe conhecia os sonhos e os
medos. Conselhos… É fácil dar conselhos. Sobretudo confusos como aquele:
que é isso de manter um pé na terra e outro no céu?
Amava-a, mas
continuava a faltar-lhe o sonho por concretizar. Queria voar. E para
isso tinha que arriscar mais, tinha de partir. Viu a sombra que lhe
encheu os olhos quando lhe disse que acabara. Mas nem a sombra impediu
que se amassem mais que nunca. Nessa noite foram fogo, ar, terra e água.
Foram corpos que se misturaram e se deram a beber sem pressa. Foram
almas abertas e despojadas de segredos. Viram-se um ao outro como quem
se vê pela primeira vez – com a surpresa de quem se conhece e descobre
sempre mais para conhecer. Demoraram-se no mais terno abraço, sem nunca
se prenderem. E quando ele foi embora ela chorou e voltou a chorar, o
vazio na cama fê-la tremer de medo e chorou por ele, porque acreditou
que ele iria perder-se na escuridão lá fora.
Concentrado, de olhos
postos no céu, ele mediu a altura dos seus sonhos, inspirou o ar ainda
carregado do cheiro dela e deixou que esse cheiro a casa o conduzisse em
direcção ao céu. Quando se sentiu a flutuar, olhou para trás, para o
caminho que tinha feito, e viu. Viu as horas todas vividas com ela. Viu
suspiros, sorrisos, viu discussões também. Viu as mãos dela, os olhos,
os segredos que tinham trocado. Viu as cores sem nome dos orgasmos, viu
as histórias que os dois tinham escrito juntos. Ainda tinha um pé na
terra. E estava com o outro no céu.
Lentamente, sem pressas, voltou a
descer pelos fios invisíveis das memórias a dois. Aterrou devagar junto
dela, que o olhou num misto de surpresa e medo.
- O mundo é maior visto lá de cima. Mas sabes o que é melhor?
- O melhor é saber que depois de cada voo tenho onde voltar.