20/12/2015

Tinta Invisível

Não sabia quando tinha acontecido, quando foi que se tinha perdido de si, mas era essa a verdade dolorosa: não tinha memórias de uma parte da sua vida. Todas as noites, quando se deitava, fechava os olhos e convocava o passado. Viajava por momentos de que se ia lembrando, saltava de um para outro a passos de gigante, tentando ganhar a maratona para chegar ao fim do caminho: abrir a porta para aquele quarto fechado a sete chaves.
Acordava e nunca se lembrava dos sonhos. Sabia que sonhava, claro que sonhava. Vagueava pela neblina, abria os olhos e tentava a todo o custo segurar as formas vagas que o cercavam a dormir, seguro de que nelas estava uma parte da sua história. Em vão ficava imóvel, preso à cama, tentando obrigar-se a não acordar. O dia entrava-lhe pelos olhos dentro e empurrava-o para fora daquele abrigo de calma.
Os dias corriam agitados. Bebia café, pegava no trabalho, tomava notas ilegíveis em reuniões demoradas e chatas, bebia de novo café, atendia clientes, telefonava ao chefe, novo documento para analisar, um almoço rápido, café, telefone, computador, trabalho e trabalho. Não perdia muito tempo a pensar se era feliz. O que é a felicidade senão um balão que rebenta se tentarmos apertá-lo com muita força?
Saía com os amigos. Viajava. Quando se sentia cansado, pegava no carro e seguia sempre para oeste, até ver o mar. Ficava sentado na areia, a ouvir aquele balanço sem fundo, e a certa altura dava por si a sorrir. Estava pronto para voltar. Às vezes ia sozinho. Outras acompanhado. As voltas da vida são cheias de curvas – tinha desistido de fazer previsões.
Um dia, numa noite como todas as outras, preparou-se para a sua viagem tempo dentro. Era uma noite como tantas – mas não foi uma noite como sempre. Viu, com a clareza de quem revê algo que conhece muito bem, um olhar directo sobre o seu. Amor ternura medo nostalgia sonho aventura ambição querer carinho abraço ser mais sempre. Tudo dentro de um olhar. Conhecia-o. Aquele olhar já tinha sido a sua casa. Com ele a guiá-lo, fixou devagar o seu próprio corpo. E viu. Espantado e quase assustado viu.
Gatafunhos escritos a tinta invisível cobriam cada centímetro da sua pele. Ia lendo e recordava-se: como tinha sido possível esquecer aquelas horas tão felizes? Espreitou entusiasmado cada frase, cada dia, cada pedaço de vida. Percebeu que tinha estado sempre ali, marca suave mas eterna na sua pele. E aquele olhar que reconheceria em qualquer canto do mundo ia guiá-lo de volta. Amor.

15/12/2015

Fora da Vida

Ninguém sabia se tinha nascido assim ou se um azar de percurso o tinha deixado naquela escuridão: era cego. À primeira vista ninguém diria, tão bem tinha aprendido a seguir pela vida sem o mínimo sinal de que não via exactamente o mesmo que todas as pessoas. Usava os sentidos com redobrado rigor e deixava-se conduzir por eles com toda a segurança. Com as mãos, o cheiro e a capacidade de identificar a beleza, reconstruía os rostos que o rodeavam. Com o ouvido apurado detectava perigos, escolhia caminhos, avançava rapidamente pela vida – mais rapidamente que qualquer outra pessoa que conhecia.
Tinha a convicção apurada de que, para compensar aquela sua falha, tinha de avançar com redobrado entusiasmo, envolvimento, charme e intuição. Rodeava cada projecto, cada objectivo, cada mulher que o atraía com uma ambição desmedida e a precisão de um felino. No final respirava sempre de satisfação: mais um tiro no alvo. O que os outros viam, ele compensava com os sentidos. Sentia desmedidamente, furiosamente. Consumia-se na excitação da busca e da conquista. Vivia prazeres intensos e acreditava que nessa intensidade era feliz.
Às vezes, no silêncio da noite, parecia ver sombras e inquietava-se. Era como se murmurassem e lhe apontassem erros. Diziam que tinha falhado aqui e ali o caminho certo, que correra por atalhos e estava perdido. Sacudia-as: disparate. A sua intuição era tudo. E que importava se hoje os sentidos o guiassem para um caminho diferente do de ontem? A intensidade dos sentidos bastava. A sofreguidão de beijos e caminhos abertos pelas mãos bastava. Estava tudo ali e não ia deixar que nenhuma sombra o inquietasse.
À força de tanto insistir que era dono do seu próprio caminho – sem interferências, sem opiniões, sem preocupações, sem responsabilidades, sem sacrifícios, sem perdas de tempo com os outros, sem medo do que não via – o seu ego foi crescendo. E quanto mais crescia, mais as sombras o rodeavam à noite. Apontavam-lhe coisas que se recusava a ver. Sorria rodeado com as imagens de conquista, beleza e conforto proporcionado por horas de carícias. Tinha o que queria. Tinha, repetia.
Um dia, inesperadamente, um par de olhos fixou-o insistentemente. Era o olhar de uma mulher pequena, quase minúscula, sem nada suficientemente atractivo para lhe amarrar os sentidos. Mas tinha uma alma tão grande que se elevou até à altura do seu enorme ego –agigantado por milhares de pequenas conquistas – e conseguiu prender-lhe o olhar. Ficaram assim longo tempo. De repente, à força de tanto ser olhado, viu.
À sua volta havia um rasto de destruição. Jardins pisados na sua fúria de conquista imediata, objectos tombados pela busca desenfreada de amor, pessoas feridas que tinha pisado sem ver, nódoas negras no seu próprio corpo que nem tinha sentido na sua ânsia de prazer. Como numa revelação, ouviu tudo o que as sombras lhe diziam à noite e nunca tinha querido entender. Escutou a história de cada passo mal dado, de cada nódoa negra, de cada viragem brusca em que tombou quem não queria.
Viu e percebeu que os caminhos mais coloridos, intensos e realmente cheios de beleza eram os daqueles que, por serem pequenos, conseguiam ter uma grandeza de alma que os elevava acima do chão, com uma leveza que os impedia de pisar o que não merecia ser pisado.
Nesse dia percebeu: não havia um fim para a história. Era o dia de um começo. E agora que via, não deixaria que os sentidos o guiassem para fora da vida.