Não sabia quando tinha acontecido, quando foi que se tinha perdido de
si, mas era essa a verdade dolorosa: não tinha memórias de uma parte da
sua vida. Todas as noites, quando se deitava, fechava os olhos e
convocava o passado. Viajava por momentos de que se ia lembrando,
saltava de um para outro a passos de gigante, tentando ganhar a maratona
para chegar ao fim do caminho: abrir a porta para aquele quarto fechado
a sete chaves.
Acordava e nunca se lembrava dos sonhos. Sabia que
sonhava, claro que sonhava. Vagueava pela neblina, abria os olhos e
tentava a todo o custo segurar as formas vagas que o cercavam a dormir,
seguro de que nelas estava uma parte da sua história. Em vão ficava
imóvel, preso à cama, tentando obrigar-se a não acordar. O dia
entrava-lhe pelos olhos dentro e empurrava-o para fora daquele abrigo de
calma.
Os dias corriam agitados. Bebia café, pegava no trabalho,
tomava notas ilegíveis em reuniões demoradas e chatas, bebia de novo
café, atendia clientes, telefonava ao chefe, novo documento para
analisar, um almoço rápido, café, telefone, computador, trabalho e
trabalho. Não perdia muito tempo a pensar se era feliz. O que é a
felicidade senão um balão que rebenta se tentarmos apertá-lo com muita
força?
Saía com os amigos. Viajava. Quando se sentia cansado, pegava
no carro e seguia sempre para oeste, até ver o mar. Ficava sentado na
areia, a ouvir aquele balanço sem fundo, e a certa altura dava por si a
sorrir. Estava pronto para voltar. Às vezes ia sozinho. Outras
acompanhado. As voltas da vida são cheias de curvas – tinha desistido de
fazer previsões.
Um dia, numa noite como todas as outras,
preparou-se para a sua viagem tempo dentro. Era uma noite como tantas –
mas não foi uma noite como sempre. Viu, com a clareza de quem revê algo
que conhece muito bem, um olhar directo sobre o seu. Amor ternura medo
nostalgia sonho aventura ambição querer carinho abraço ser mais sempre.
Tudo dentro de um olhar. Conhecia-o. Aquele olhar já tinha sido a sua
casa. Com ele a guiá-lo, fixou devagar o seu próprio corpo. E viu.
Espantado e quase assustado viu.
Gatafunhos escritos a tinta
invisível cobriam cada centímetro da sua pele. Ia lendo e recordava-se:
como tinha sido possível esquecer aquelas horas tão felizes? Espreitou
entusiasmado cada frase, cada dia, cada pedaço de vida. Percebeu que
tinha estado sempre ali, marca suave mas eterna na sua pele. E aquele
olhar que reconheceria em qualquer canto do mundo ia guiá-lo de volta.
Amor.
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