15/12/2015

Fora da Vida

Ninguém sabia se tinha nascido assim ou se um azar de percurso o tinha deixado naquela escuridão: era cego. À primeira vista ninguém diria, tão bem tinha aprendido a seguir pela vida sem o mínimo sinal de que não via exactamente o mesmo que todas as pessoas. Usava os sentidos com redobrado rigor e deixava-se conduzir por eles com toda a segurança. Com as mãos, o cheiro e a capacidade de identificar a beleza, reconstruía os rostos que o rodeavam. Com o ouvido apurado detectava perigos, escolhia caminhos, avançava rapidamente pela vida – mais rapidamente que qualquer outra pessoa que conhecia.
Tinha a convicção apurada de que, para compensar aquela sua falha, tinha de avançar com redobrado entusiasmo, envolvimento, charme e intuição. Rodeava cada projecto, cada objectivo, cada mulher que o atraía com uma ambição desmedida e a precisão de um felino. No final respirava sempre de satisfação: mais um tiro no alvo. O que os outros viam, ele compensava com os sentidos. Sentia desmedidamente, furiosamente. Consumia-se na excitação da busca e da conquista. Vivia prazeres intensos e acreditava que nessa intensidade era feliz.
Às vezes, no silêncio da noite, parecia ver sombras e inquietava-se. Era como se murmurassem e lhe apontassem erros. Diziam que tinha falhado aqui e ali o caminho certo, que correra por atalhos e estava perdido. Sacudia-as: disparate. A sua intuição era tudo. E que importava se hoje os sentidos o guiassem para um caminho diferente do de ontem? A intensidade dos sentidos bastava. A sofreguidão de beijos e caminhos abertos pelas mãos bastava. Estava tudo ali e não ia deixar que nenhuma sombra o inquietasse.
À força de tanto insistir que era dono do seu próprio caminho – sem interferências, sem opiniões, sem preocupações, sem responsabilidades, sem sacrifícios, sem perdas de tempo com os outros, sem medo do que não via – o seu ego foi crescendo. E quanto mais crescia, mais as sombras o rodeavam à noite. Apontavam-lhe coisas que se recusava a ver. Sorria rodeado com as imagens de conquista, beleza e conforto proporcionado por horas de carícias. Tinha o que queria. Tinha, repetia.
Um dia, inesperadamente, um par de olhos fixou-o insistentemente. Era o olhar de uma mulher pequena, quase minúscula, sem nada suficientemente atractivo para lhe amarrar os sentidos. Mas tinha uma alma tão grande que se elevou até à altura do seu enorme ego –agigantado por milhares de pequenas conquistas – e conseguiu prender-lhe o olhar. Ficaram assim longo tempo. De repente, à força de tanto ser olhado, viu.
À sua volta havia um rasto de destruição. Jardins pisados na sua fúria de conquista imediata, objectos tombados pela busca desenfreada de amor, pessoas feridas que tinha pisado sem ver, nódoas negras no seu próprio corpo que nem tinha sentido na sua ânsia de prazer. Como numa revelação, ouviu tudo o que as sombras lhe diziam à noite e nunca tinha querido entender. Escutou a história de cada passo mal dado, de cada nódoa negra, de cada viragem brusca em que tombou quem não queria.
Viu e percebeu que os caminhos mais coloridos, intensos e realmente cheios de beleza eram os daqueles que, por serem pequenos, conseguiam ter uma grandeza de alma que os elevava acima do chão, com uma leveza que os impedia de pisar o que não merecia ser pisado.
Nesse dia percebeu: não havia um fim para a história. Era o dia de um começo. E agora que via, não deixaria que os sentidos o guiassem para fora da vida.

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