Ninguém sabia se tinha nascido assim ou se um azar de percurso o tinha
deixado naquela escuridão: era cego. À primeira vista ninguém diria, tão
bem tinha aprendido a seguir pela vida sem o mínimo sinal de que não
via exactamente o mesmo que todas as pessoas. Usava os sentidos com
redobrado rigor e deixava-se conduzir por eles com toda a segurança. Com
as mãos, o cheiro e a capacidade de identificar a beleza, reconstruía
os rostos que o rodeavam. Com o ouvido apurado detectava perigos,
escolhia caminhos, avançava rapidamente pela vida – mais rapidamente que
qualquer outra pessoa que conhecia.
Tinha a convicção apurada de
que, para compensar aquela sua falha, tinha de avançar com redobrado
entusiasmo, envolvimento, charme e intuição. Rodeava cada projecto, cada
objectivo, cada mulher que o atraía com uma ambição desmedida e a
precisão de um felino. No final respirava sempre de satisfação: mais um
tiro no alvo. O que os outros viam, ele compensava com os sentidos.
Sentia desmedidamente, furiosamente. Consumia-se na excitação da busca e
da conquista. Vivia prazeres intensos e acreditava que nessa
intensidade era feliz.
Às vezes, no silêncio da noite, parecia ver
sombras e inquietava-se. Era como se murmurassem e lhe apontassem erros.
Diziam que tinha falhado aqui e ali o caminho certo, que correra por
atalhos e estava perdido. Sacudia-as: disparate. A sua intuição era
tudo. E que importava se hoje os sentidos o guiassem para um caminho
diferente do de ontem? A intensidade dos sentidos bastava. A sofreguidão
de beijos e caminhos abertos pelas mãos bastava. Estava tudo ali e não
ia deixar que nenhuma sombra o inquietasse.
À força de tanto
insistir que era dono do seu próprio caminho – sem interferências, sem
opiniões, sem preocupações, sem responsabilidades, sem sacrifícios, sem
perdas de tempo com os outros, sem medo do que não via – o seu ego foi
crescendo. E quanto mais crescia, mais as sombras o rodeavam à noite.
Apontavam-lhe coisas que se recusava a ver. Sorria rodeado com as
imagens de conquista, beleza e conforto proporcionado por horas de
carícias. Tinha o que queria. Tinha, repetia.
Um dia,
inesperadamente, um par de olhos fixou-o insistentemente. Era o olhar de
uma mulher pequena, quase minúscula, sem nada suficientemente atractivo
para lhe amarrar os sentidos. Mas tinha uma alma tão grande que se
elevou até à altura do seu enorme ego –agigantado por milhares de
pequenas conquistas – e conseguiu prender-lhe o olhar. Ficaram assim
longo tempo. De repente, à força de tanto ser olhado, viu.
À sua
volta havia um rasto de destruição. Jardins pisados na sua fúria de
conquista imediata, objectos tombados pela busca desenfreada de amor,
pessoas feridas que tinha pisado sem ver, nódoas negras no seu próprio
corpo que nem tinha sentido na sua ânsia de prazer. Como numa revelação,
ouviu tudo o que as sombras lhe diziam à noite e nunca tinha querido
entender. Escutou a história de cada passo mal dado, de cada nódoa
negra, de cada viragem brusca em que tombou quem não queria.
Viu e
percebeu que os caminhos mais coloridos, intensos e realmente cheios de
beleza eram os daqueles que, por serem pequenos, conseguiam ter uma
grandeza de alma que os elevava acima do chão, com uma leveza que os
impedia de pisar o que não merecia ser pisado.
Nesse dia percebeu:
não havia um fim para a história. Era o dia de um começo. E agora que
via, não deixaria que os sentidos o guiassem para fora da vida.
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