25/01/2019

Todos Somos diferentes

O grande mistério da vida... É que só se aprende a viver, vivendo. E cada vida é única! Seria muito fácil se os erros da vida dos outros e as lições pudessem ser transferidos de pessoa para pessoa. Acontece que errar faz parte da vida.
O grande problema de errar, é ver nos erros um fracasso de onde nenhuma lição se pode tirar. São os erros que cometemos que faz de cada um de nós pessoas singulares, únicas. Muitas vezes apegamos-nos tanto aos erros, que passamos a vida a tentar corrigi-los sem nunca parar para pensar no que podemos aprender com os erros e tentar não repeti-los.
O tempo não para. A vida não volta atrás. E vamos continuar a errar. Só não nos podemos dar ao luxo de cometer sempre os mesmo erros. Há muitas maneiras diferentes de errar, e cada uma nos traz uma lição. A vida não vem com manual de instruções, e se pudéssemos escrever um manual no fim da vida, não serviria para ninguém além de nós mesmos. Todos somos diferentes.

14/01/2016

Viagem Sem Fim

Era um barco de aparência frágil, um minúsculo ponto no meio do oceano. Quando decidiu soltar amarras e fazer-se à aventura, riram-se dele. Acharam que não ia resistir ao embate constante das ondas, aos caprichos das marés, à força seca e por vezes bruta do vento. Ignorou os velhos do Restelo e partiu. Sabia o que queria e mesmo sem mapa estava convencido que seria capaz de chegar ao destino.
Navegou meses a fio de olhos postos no horizonte, à procura de ver terra. E quando finalmente uma trémula linha castanha foi ganhando nitidez, saltou de euforia. Aportou entusiasmado e começou a explorar tudo em volta, mas era uma ilhota pequena e despida. Pareceu-lhe desinteressante e rapidamente se decidiu a seguir viagem.
Partiu sem hesitações, sem sequer olhar para trás: o que procurava não estava ali. Recomeçou a sua busca insistente. Nalguns momentos começava a sentir-se cansado e para recuperar forças deixava-se ficar quieto, de olhos fechados, sentindo o balanço suave das ondas a acariciá-lo. Voltava ao leme recuperado, novamente de olhar posto no caminho em frente e seguro de que chegaria ao destino.
Um dia, quando começava a desanimar, viu novamente um ponto amarelado tomar forma e ganhou velocidade para se aproximar da areia fina que lhe enchia os olhos. Entrou numa baía paradisíaca e sentiu-se em casa. Saltou de euforia, correu às voltas na praia e só depois de recuperar a calma iniciou a exploração. Descobriu montanhas com uma vista de cortar a respiração, quedas de água onde se sentia em paz, florestas luxuriantes, enseadas tranquilas e árvores carregadas de fruto. Sentiu que seria capaz de ficar ali para sempre.
Durante algum tempo sentia-se feliz. Todos os dias encontrava um novo local, desvendava um segredo, somava um novo momento de entusiasmo a tantos que já levava naquela ilha. Vibrava e sentia-se vivo como nunca antes tinha acontecido.
Mas um dia, inexplicavelmente, começou a sentir-se cansado da rotina. As paisagens que antes lhe confortavam os olhos pareciam-lhe subitamente desinteressantes. Por mais que mergulhasse o fundo das enseadas já pouco de novo tinha para lhe dar. Sentia-se inquieto e confuso. Crescia o desejo de voltar a partir, mas tinha medo de não voltar a encontrar um abrigo tão seguro. Tudo lhe parecia perfeito. Mas então por que não se sentia preenchido e em paz?
De tanto pensar no que havia para descobrir no vasto oceano, acabou por decidir a fazer-se de novo ao mar. À sua frente haveria mil ilhas como aquela, se calhar mais perfeitas. Não iria contentar-se com tão pouco para o resto da vida. Quando começou a afastar-se ainda hesitou e por momentos doeu-lhe a alma por ver o que deixava para trás. O mar vasto à sua frente apagou-lhe essa dúvida. Ia prosseguir e fazer novas descobertas. Ia valer a pena, repetiu para si próprio.
Quando a tempestade o agitava no mar alto, acontecia-lhe pensar na segurança da sua ilha e arrepender-se de não ter ficado. Nessas alturas ficava abatido e sentia-se derrotado pela ambição de querer sempre mais. Fixava as ondas e o céu cinzento e desejava que o mar o engolisse. Mas depois de dias à deriva, em que nem tentava aproximar-se do leme e escolher o rumo, o sol rasgava timidamente as nuvens e pouco a pouco a calma voltava a reinar à sua volta. E mais uma vez olhava e procurava entusiasmado, à espera que algo de novo tomasse conta dos seus dias.
Um dia viu e arregalou os olhos com o que via. Era uma formação rochosa gigantesca, sob a qual uma gruta abria caminho para a praia mais bela que já tinha visto na vida. Fez uma entrada tranquila e aproximou-se sem pressas. Iniciou o primeiro de muitos dias de explorações intensas e apaixonantes. A ilha era completa, com paisagens variadas e recursos que pareciam infinitos. Ia envelhecer ali. Não tinha dúvidas.
Não tinha? Não queria acreditar quando pela primeira vez sentiu uma dúvida apertar-lhe o estômago. Sentiu-se minúsculo e perdido. O que lhe faltava? Como saber onde queria chegar? Por que razão nada parecia satisfazê-lo? Seria incapaz de encontrar a sua ilha perfeita, o seu porto de abrigo?
Tantas perguntas moíam. Chegavam a doer de tão fundas. Por mais que olhasse para dentro de si não encontrava as respostas. Tornou-se inevitável partir. Se calhar pertencia ao oceano, não à terra.
Foi a partida mais difícil e angustiada. Por várias vezes voltou atrás e quis pisar de novo a terra. O apelo do mar sobrepôs-se e acabou por se afastar até a ilha já não estar ao alcance do olhar.
Navegava quase sem rumo, mais frágil que nunca. As imagens do passado surgiam-lhe a todo o instante, revia as suas ilhas e as saudades apertavam. Desejava reencontrá-las, voltar a sentir-se feliz. Era preciso muito esforço para se arrancar da letargia em que as recordações o deixavam. Olhava insistentemente à sua volta, na esperança de descobrir alguma das ilhas em que já tinha sido feliz. Em vão.
Quando estava perto do desespero, atirou-se ao mar. Por segundos pensou deixar-se levar sem oferecer resistência, pediu que um remoinho o arrastasse para o fundo. Bastou um segundo sem ir à tona para se arrepender. Nunca desistiria de lutar e procurar. Recuperou o equilíbrio e viu uma pedra brilhante e azulada brilhar no fundo do mar, mesmo debaixo dos seus olhos. Não seria fácil alcançá-la, mas só parou quando conseguiu tê-la na mão. Era uma pedra misteriosa, que parecia sussurrar-lhe quando a aproximava do ouvido. Sentiu-se maravilhado com a força que parecia transmitir.
Quando a fixou com mais atenção, percebeu que tinha os pontos cardeais inscritos e que lhe indicava o norte. Sorriu, subitamente confortado. Não sabia ainda o que tanto mar lhe reservava. Não sabia se alguma vez encontraria a ilha perfeita que lhe acalmasse a agitação interior. Não sabia se voltaria a uma das suas antigas ilhas, que se calhar eram a meta que procurava. Sabia, isso sim, que já não andaria à deriva. A pedra azulada ajudava-o a descobrir o caminho. Por mais que demorasse, o tempo haveria de lhe dar as respostas certas. Os mistérios do desconhecido já não o assustavam.

02/01/2016

Universo Particular

“Um dia hás-de conquistar o universo.” Sempre que a ouvia dizer isso, tremia. Tinha sonhos enormes, sim. Queria voar e o universo parecia-lhe a medida perfeita para a sua ambição. Às vezes acordava cheio de entusiasmo, convencido que era capaz de levar tudo à frente. Outras vezes desanimava. Pequeno. Perdido. Confuso. Frágil. Dois em um, indeciso no caminho a seguir.
“Um dia hás-de conquistar o universo.” Fechava os olhos e sempre que ficava em silêncio ouvia. De tanta insistência, decidiu: tinha de tentar. Ia encontrar a fórmula certa. Fechou-se no laboratório e aquele tornou-se o seu maior objetivo. Mal dormia, pouco comia, trabalhava incessantemente. Era uma questão de insistir, acreditava. Rabiscava fórmulas, afinava ingredientes, tomava notas e continuava a planear de forma metódica aquilo que queria.
Às vezes desanimava – eram os dias em que o seu lado mais sombrio dominava e o deixava paralisado. Nessas alturas julgava perder-se. Olhava as notas e pareciam-lhe apenas traços confusos e erráticos. Não conseguia descodificar o seu próprio caminho, trilhado com tanto esforço. A falta de memória chegava a assustá-lo. Era como se um só dia bastasse para perder as aprendizagens de longas semanas.
Cambaleava, tremia, mas recusava-se a cair. Ouvia ainda e sempre a voz dela, acompanhada de um sorriso todo ternura. “Um dia hás-de conquistar o universo.” E voltava a acreditar, de novo recordado de quem era. Força luz ambição trabalho carinho sorriso: amor. Levantava-se renovado e voltava a pegar nos tubos, produtos químicos, cálculos e fórmulas. Trabalhava energicamente, seguro de si.
Até que um dia, quando se julgava perto de desvendar o segredo, perto da meta, à beira de conseguir a chave para conquistar o mundo inteiro, a conjugação errada de componentes causou uma forte explosão. O laboratório desfez-se em cinzas. Raios assustadores rasgaram-lhe o dia. As palavras terminaram: vazio sem fim.
Deixou-se ficar quieto, a sentir cada dor que lhe marcava a pele, os músculos, a vida e a alma. Não soube quanto tempo durou a apatia nem como foi que a luz chegou. Como um pó mágico que as fadas espalham sobre as pessoas – mesmo sobre aquelas que não acreditam. Como um milagre que resgata das cinzas aqueles que se julgam à beira do fim. Como um sorriso maior que a vida, capaz de varrer dúvidas, medos e cobardia. A luz envolveu-o devagar, abraçou-o, limpou-lhe o olhar e varreu pacientemente as sombras, uma por uma. E ele viu, com a clareza que o seu lado mais sombrio nunca tinha deixado ver, que o universo inteiro estava dentro de si.

20/12/2015

Tinta Invisível

Não sabia quando tinha acontecido, quando foi que se tinha perdido de si, mas era essa a verdade dolorosa: não tinha memórias de uma parte da sua vida. Todas as noites, quando se deitava, fechava os olhos e convocava o passado. Viajava por momentos de que se ia lembrando, saltava de um para outro a passos de gigante, tentando ganhar a maratona para chegar ao fim do caminho: abrir a porta para aquele quarto fechado a sete chaves.
Acordava e nunca se lembrava dos sonhos. Sabia que sonhava, claro que sonhava. Vagueava pela neblina, abria os olhos e tentava a todo o custo segurar as formas vagas que o cercavam a dormir, seguro de que nelas estava uma parte da sua história. Em vão ficava imóvel, preso à cama, tentando obrigar-se a não acordar. O dia entrava-lhe pelos olhos dentro e empurrava-o para fora daquele abrigo de calma.
Os dias corriam agitados. Bebia café, pegava no trabalho, tomava notas ilegíveis em reuniões demoradas e chatas, bebia de novo café, atendia clientes, telefonava ao chefe, novo documento para analisar, um almoço rápido, café, telefone, computador, trabalho e trabalho. Não perdia muito tempo a pensar se era feliz. O que é a felicidade senão um balão que rebenta se tentarmos apertá-lo com muita força?
Saía com os amigos. Viajava. Quando se sentia cansado, pegava no carro e seguia sempre para oeste, até ver o mar. Ficava sentado na areia, a ouvir aquele balanço sem fundo, e a certa altura dava por si a sorrir. Estava pronto para voltar. Às vezes ia sozinho. Outras acompanhado. As voltas da vida são cheias de curvas – tinha desistido de fazer previsões.
Um dia, numa noite como todas as outras, preparou-se para a sua viagem tempo dentro. Era uma noite como tantas – mas não foi uma noite como sempre. Viu, com a clareza de quem revê algo que conhece muito bem, um olhar directo sobre o seu. Amor ternura medo nostalgia sonho aventura ambição querer carinho abraço ser mais sempre. Tudo dentro de um olhar. Conhecia-o. Aquele olhar já tinha sido a sua casa. Com ele a guiá-lo, fixou devagar o seu próprio corpo. E viu. Espantado e quase assustado viu.
Gatafunhos escritos a tinta invisível cobriam cada centímetro da sua pele. Ia lendo e recordava-se: como tinha sido possível esquecer aquelas horas tão felizes? Espreitou entusiasmado cada frase, cada dia, cada pedaço de vida. Percebeu que tinha estado sempre ali, marca suave mas eterna na sua pele. E aquele olhar que reconheceria em qualquer canto do mundo ia guiá-lo de volta. Amor.

15/12/2015

Fora da Vida

Ninguém sabia se tinha nascido assim ou se um azar de percurso o tinha deixado naquela escuridão: era cego. À primeira vista ninguém diria, tão bem tinha aprendido a seguir pela vida sem o mínimo sinal de que não via exactamente o mesmo que todas as pessoas. Usava os sentidos com redobrado rigor e deixava-se conduzir por eles com toda a segurança. Com as mãos, o cheiro e a capacidade de identificar a beleza, reconstruía os rostos que o rodeavam. Com o ouvido apurado detectava perigos, escolhia caminhos, avançava rapidamente pela vida – mais rapidamente que qualquer outra pessoa que conhecia.
Tinha a convicção apurada de que, para compensar aquela sua falha, tinha de avançar com redobrado entusiasmo, envolvimento, charme e intuição. Rodeava cada projecto, cada objectivo, cada mulher que o atraía com uma ambição desmedida e a precisão de um felino. No final respirava sempre de satisfação: mais um tiro no alvo. O que os outros viam, ele compensava com os sentidos. Sentia desmedidamente, furiosamente. Consumia-se na excitação da busca e da conquista. Vivia prazeres intensos e acreditava que nessa intensidade era feliz.
Às vezes, no silêncio da noite, parecia ver sombras e inquietava-se. Era como se murmurassem e lhe apontassem erros. Diziam que tinha falhado aqui e ali o caminho certo, que correra por atalhos e estava perdido. Sacudia-as: disparate. A sua intuição era tudo. E que importava se hoje os sentidos o guiassem para um caminho diferente do de ontem? A intensidade dos sentidos bastava. A sofreguidão de beijos e caminhos abertos pelas mãos bastava. Estava tudo ali e não ia deixar que nenhuma sombra o inquietasse.
À força de tanto insistir que era dono do seu próprio caminho – sem interferências, sem opiniões, sem preocupações, sem responsabilidades, sem sacrifícios, sem perdas de tempo com os outros, sem medo do que não via – o seu ego foi crescendo. E quanto mais crescia, mais as sombras o rodeavam à noite. Apontavam-lhe coisas que se recusava a ver. Sorria rodeado com as imagens de conquista, beleza e conforto proporcionado por horas de carícias. Tinha o que queria. Tinha, repetia.
Um dia, inesperadamente, um par de olhos fixou-o insistentemente. Era o olhar de uma mulher pequena, quase minúscula, sem nada suficientemente atractivo para lhe amarrar os sentidos. Mas tinha uma alma tão grande que se elevou até à altura do seu enorme ego –agigantado por milhares de pequenas conquistas – e conseguiu prender-lhe o olhar. Ficaram assim longo tempo. De repente, à força de tanto ser olhado, viu.
À sua volta havia um rasto de destruição. Jardins pisados na sua fúria de conquista imediata, objectos tombados pela busca desenfreada de amor, pessoas feridas que tinha pisado sem ver, nódoas negras no seu próprio corpo que nem tinha sentido na sua ânsia de prazer. Como numa revelação, ouviu tudo o que as sombras lhe diziam à noite e nunca tinha querido entender. Escutou a história de cada passo mal dado, de cada nódoa negra, de cada viragem brusca em que tombou quem não queria.
Viu e percebeu que os caminhos mais coloridos, intensos e realmente cheios de beleza eram os daqueles que, por serem pequenos, conseguiam ter uma grandeza de alma que os elevava acima do chão, com uma leveza que os impedia de pisar o que não merecia ser pisado.
Nesse dia percebeu: não havia um fim para a história. Era o dia de um começo. E agora que via, não deixaria que os sentidos o guiassem para fora da vida.